Em busca de uma sociedade consciente

Podemos destruir o mundo! O que a China quis dizer com este desfile?

Imagine uma avenida larga, bandeiras erguidas e câmeras do mundo inteiro apontadas para o mesmo ponto. Tanques, mísseis e drones passam em formação precisa. O que um desfile militar quer que você veja? O que ele quer que você apenas deduza? A China colocou sua força no asfalto de Pequim e, junto com ela, uma narrativa calculada para falar com rivais, vizinhos e o próprio público interno. Comecemos pelo óbvio que, às vezes, passa batido: uma parada não é um inventário neutro de equipamentos, é um gesto de comunicação estratégica. Cada plataforma que cruza a avenida foi escolhida para sugerir capacidade, prontidão e, sobretudo, custo para quem pensar em desafiar.

70th anniversary of the founding of the People’s Republic of China. (Photo by GREG BAKER / AFP)

O quadro político ajuda a decifrar a mensagem. A data conecta memória histórica à ideia de coesão nacional. As arquibancadas mostram aliados e líderes alinhados, compondo uma foto que pretende extrapolar o hardware. O subtexto é claro: existe uma frente, um eixo, uma visão de ordem internacional que não gira em torno do Ocidente. Quando esse pano de fundo está armado, a vitrine técnica ganha outra camada de leitura. O míssil intercontinental que aparece em destaque não é apenas um cilindro sobre rodas; é a frase “pense duas vezes” escrita em linguagem militar. A presença de vetores por terra, mar e ar sugere uma tríade nuclear funcional, mesmo que analistas saibam que maturidade operacional não se prova no desfile. O objetivo é deslocar o cálculo de risco de qualquer adversário: vale a pena testar limites quando a outra parte anuncia alcance, redundância e capacidade de resposta?

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O mar e o subsolo do mar entram na história com drones navais e submarinos não tripulados que sugerem uma aposta em negação de área. Por que isso importa? Porque a disputa no Indo-Pacífico se resolve, em grande parte, nas rotas marítimas e nas linhas de comunicação que carregam comércio, energia e influência. Se um país sinaliza que pode dificultar a vida de grupos-tarefa com porta-aviões, escoltar comboios com sensores distribuídos e saturar defesas com enxames não tripulados, o adversário precisa gastar mais, treinar mais, reorganizar doutrina. No ar, a combinação de caças tripulados com “fiéis escudeiros” não tripulados aponta para táticas cooperativas em que os drones absorvem risco, multiplicam olhos e confundem radares. Isso já está pronto para combate real ou ainda é uma edição para a câmera? Eis a pergunta que todo analista tenta responder nas horas seguintes ao desfile.

Olhar para a avenida, porém, é só metade do trabalho. A outra metade é imaginar o que não desfila: logística, manutenção, interoperabilidade entre forças, estoques de peças, redes de comando e controle, guerra eletrônica e ciberdefesa. Uma arma isolada pode ser impressionante, mas vence guerras quem integra sistemas e mantém disponibilidade quando a poeira sobe. Há tripulações suficientes? A indústria dá conta de reposições rápidas? As plataformas “conversam” em tempo real sob interferência? Esses pontos raramente entram no espetáculo, embora decidam o resultado fora dele. E é aqui que a plateia precisa manter dois pensamentos ao mesmo tempo: um, de que a exibição é, sim, um indicador de ambição e avanço; dois, de que ambição e avanço não equivalem automaticamente a prontidão sustentada.

Se dissuasão é convencer o outro de que lutar custará demais, o desfile funciona como teatro. Marketing de guerra é uma expressão dura, mas útil para lembrar que parte do repertório é apresentada antes de estar plenamente madura, justamente para moldar percepções. O que isso provoca do outro lado? Contramedidas. Cada míssil que promete penetrar defesas estimula investimentos em sensores, satélites de alerta, interceptadores, inteligência artificial de triagem de alvos. Cada drone subaquático que sugere negação marítima força melhorias em sonar, patrulha e proteção de rotas. Quem paga essa conta? A sociedade, que também demanda saúde, educação, transição energética. Segurança de quem e a que preço?

Military vehicles take part in a military parade at Tiananmen Square in Beijing on October 1, 2019, to mark the 70th anniversary of the founding of the People’s Republic of China. (Photo by GREG BAKER / AFP)

Enquanto isso, a foto do palanque circula pelo mundo. A presença de lideranças estrangeiras reforça a ideia de que há convergências políticas e tecnológicas. Isso muda algo na prática? Ajuda a legitimar escolhas domésticas de orçamento, acelera cooperações discretas e sinaliza a parceiros que haverá alguém por perto em crises. Para quem observa de fora, o efeito é ambivalente: aumenta a percepção de blocos e, com ela, o risco de erro de cálculo. Em ambientes densos de meios militares, acidentes aéreos ou navais podem escalar em horas se não houver linhas diretas, protocolos de aproximação e transparência mínima sobre exercícios. Estamos melhorando esses mecanismos de segurança ou apenas somando peças a um tabuleiro já apertado?

Do ponto de vista técnico, há momentos em que a câmera captura novidades que merecem atenção: um novo míssil de longo alcance, possivelmente com melhorias de guiagem e sobrevivência; uma peça lançada de submarinos que, em tese, consolida a capacidade de segundo ataque; sistemas antinavio com perfis de voo pensados para atravessar zonas A2/AD; e drones com autonomia e carga útil compatíveis com missões de vigilância persistente. O que esses sinais têm em comum? Todos indicam uma estratégia de aumentar o preço da projeção de poder adversária e de defender, com múltiplas camadas, espaços considerados vitais. A questão que resta é prática: quanto disso já está integrado ao treino real, às simulações e às cadeias de suprimento? Sem essa integração, o que brilha na avenida pode falhar no campo.

Também vale a pena perguntar por que desfiles continuam sendo uma linguagem usada por grandes potências. Eles coordenam afetos internos, alimentam orgulho nacional, estabelecem um ponto de coesão. E, na dimensão externa, são mensagens calibradas para públicos distintos: o rival militar, o parceiro hesitante, o vizinho que observa. É possível que muita coisa ali seja redundante em termos táticos, mas útil em termos políticos. A política, afinal, também se faz com símbolos. Quando se trata de segurança internacional, símbolos têm consequências. Um passo mal lido vira escalada; uma leitura exagerada vira corrida armamentista.

70th anniversary of the founding of the Peoples Republic of China. (Photo by GREG BAKER / AFP)

No fim, o espectador cuidadoso sai com duas listas: o que de fato mudou no equilíbrio de forças e o que mudou na cabeça dos atores. A primeira lista é técnica e depende de verificações, imagens de satélite, testes, exercícios e inteligência. A segunda é psicológica e, por isso mesmo, poderosa: a sensação de que o custo de confrontar ficou maior, de que o tempo de resposta do outro encurtou, de que a indústria nacional dá sinais de autonomia. O desfile chinês quis produzir exatamente esse efeito. Conseguiu? O termômetro serão as respostas discretas nos orçamentos, nos cronogramas de aquisição e nas doutrinas atualizadas dos outros atores do tabuleiro.

Os sinais mais claros disso serão os ajustes nas políticas internas e nos acordos comerciais, bem como as respostas estratégicas de outras potências mundiais. É importante analisar com cautela as intenções por trás dessas demonstrações, pois elas podem conter elementos de propaganda e de dissuasão. O equilíbrio entre demonstrar poder e manter a estabilidade geopolítica é crucial para evitar futuras crises.

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