É possível trocar peças do corpo até viver para sempre. A pergunta parece saída de ficção científica, mas reapareceu quando microfones abertos captaram Vladimir Putin e Xi Jinping conversando sobre transplantes “contínuos”, rejuvenescimento e até “imortalidade”, durante o desfile militar em Pequim. A cena correu o mundo e, por alguns minutos, pareceu que o futuro havia encurtado distância com um simples comentário de bastidores. O que há de ciência e o que é apenas retórica nesse imaginário.
O diálogo captado no evento, transmitido pela mídia estatal chinesa e repercutido por agências internacionais, trouxe duas ideias centrais. Primeiro, a noção de que biotecnologia avançaria a ponto de trocar órgãos sucessivamente, prolongando a vida quase sem limites. Segundo, a possibilidade de humanos alcançarem 150 anos neste século. As frases foram curtas, imprecisas e poderosas: bastaram para acionar manchetes, opiniões e um frenesi de interpretações.
From left, Russian President Vladimir Putin, Chinese President Xi Jinping and North Korean leader Kim Jong Un arrive at a military parade to commemorate the 80th anniversary of Japan’s World War II surrender in Beijing on September 3, 2025 [Sergei Bobylev/Sputnik via AP Photo]
Comecemos pelo que é real. Transplantes salvam vidas em falência terminal de órgãos e vêm ficando mais seguros nas últimas décadas. Técnicas cirúrgicas, melhor seleção de doadores e imunossupressão mais refinada aumentam sobrevida, especialmente em fígado, rim e coração. Mas tudo isso preserva função, não reverte o envelhecimento do organismo como um todo. Rejeição crônica, infecções e maior risco de câncer continuam sendo desafios de longo prazo. A medicina ganha tempo, não “idade negativa”.
Há um avanço recente que merece atenção: xenotransplantes de porco para humano, que nada mais é do que o transplante de órgãos de porcos geneticamente modificados para seres humanos. Depois de anos no laboratório, os primeiros casos clínicos surgiram com monitoramento intenso e resultados mistos. É um marco que pode reduzir filas e ampliar acesso, se a segurança se confirmar. Ainda assim, pensar em “trocas em série” para vencer a morte esbarra em limites imunológicos, riscos zoonóticos e durabilidade incerta dos enxertos. A promessa plausível é acesso; a fantasia é imortalidade.
Se existe fronteira com cheiro de revolução, ela está na biologia do envelhecer. A chamada reprogramação parcial, acionando fatores que “ajustam” a epigenética de células adultas, já reverteu marcadores de idade e melhorou saúde em camundongos idosos, em estudos controlados. O sinal é animador, mas a estrada até humanos é longa: há risco de tumores, perda de identidade celular e efeitos fora do alvo. Ensaios clínicos em larga escala ainda não existem. Por ora, é ciência promissora, não solução disponível.
Outra via em teste são os senolíticos, drogas e estratégias para eliminar células envelhecidas que inflamam e degradam tecidos. Em animais, os resultados são consistentes; em humanos, começam estudos pequenos, com sinais de benefício em condições específicas. Antes de sonhar com décadas extras, é provável que vejamos indicações pontuais, para fibroses, doenças cardiovasculares, talvez neurodegenerativas com ganhos de qualidade de vida. A aritmética do tempo continua sem truques.
E o teto da vida. Mesmo com a medicina empurrando limites, a demografia não mostrou deslocamento robusto do máximo humano além do recorde de 122 anos. A expectativa média sobe, o pico permanece teimoso. Há quem argumente que não há teto fixo; outros defendem um limite prático próximo de 115–122 anos. O consenso que interessa ao leitor é simples: com as tecnologias atuais, 150 anos permanecem um exercício de futurologia, não uma projeção baseada em evidência.
Por que, então, frases sobre “imortalidade” colam tão fácil. Porque misturam desejo, poder e narrativa. Quando dois líderes globais associam sua imagem a um futuro biotecnológico esplêndido, o efeito simbólico é imediato. Mas políticas públicas sérias não podem se orientar por desejo performático. Elas precisam de estudos revisados por pares, transparência de dados e prioridades claras: prevenção, atenção primária, controle de crônicas, acesso a terapias que já salvam vidas hoje.
Há também um ponto ético incontornável. Biotecnologia de ponta tende a chegar primeiro para poucos. Se a conversa sobre longevidade ignorar acesso universal, corremos o risco de criar um apartheid biológico, em que anos extras se convertem em privilégio. A boa política de saúde, ao contrário, nasce do espírito público: reduzir filas de transplante, qualificar doação, financiar pesquisa séria e garantir que conquistas cheguem a todos, não apenas a quem pode pagar.
No fim, a pergunta do primeiro parágrafo continua útil, justamente porque exige uma resposta terrena. Podemos trocar peças do corpo para viver para sempre?
Hoje, não. Podemos, porém, viver melhor e mais, se organizarmos a sociedade ao redor da evidência: vacinas, rastreamento, tratamento oportuno, ciência sem pirotecnia. A ficção inspira mas até então é a realidade que salva.
Fontes
Foto da capa: Russian President Vladimir Putin, Kazakh President Kassym-Jomart Tokayev, Chinese President Xi Jinping and Uzbek President Shavkat Mirziyoyev arrive for a military parade marking the 80th anniversary of the end of World War Two, in Beijing, China September 3, 2025. Sputnik/Alexander Kazakov/Pool via REUTERS
– Conversa captada no desfile em Pequim; trechos sobre transplantes “contínuos” e 150 anos; confirmação e repercussões internacionais. (Reuters, Al Jazeera, CBS News)
– Xenotransplante em humanos e estágio clínico inicial; potencial de ampliar acesso vs. limites para “imortalidade”.
– Contexto de cobertura e enquadramentos editoriais em veículos de referência. (The Guardian)